Atualizado em 29/12/2024 as 15:07:54
Gosto muito da palavra estilhaços, que intitula um livro de Marcelo Backes, na ideia de que aforismos e epigramas são cacos de textos que se espalham e ferem os seus leitores, como pedaços de pedra ou metal que cortam as vítimas depois de uma explosão ou um forte impacto. As frases curtas de Barata Cichetto em seu recente livro, “Filosofia de pés sujos” (Edição independente, 144 páginas), cortam fundo como o machado de Kafka que quebra o gelo dentro de nós, como o martelo ou marreta de Nietzsche explodindo nossa cabeça ou apenas nos deixando tontos de tanto pensar.
O paulista Barata Cichetto é um artista de várias faces: poeta, contista, romancista, letrista de música, pintor, criador e locutor de programas de rádio na internet em que dialoga com várias vertentes artísticas e filosóficas, mas sobretudo toca muito rock’n’roll, criador de sites culturais, sendo o mais recente o “BarDoPoeta”, é também editor artesanal (faz todos os seus livros) e o que mais der na telha. Começou na época da geração mimeógrafo, sempre com publicações alternativas, portanto. E sempre provocador. E desbocado. E herege. E agora mandando nudes na capa e contracapa do seu livro, dando uma de modelo. E mostrando seus pés sujos!
Declarou recentemente que não escreverá mais poesias. Não acredito nele. Escritores são mentirosos. Sei disso porque sou (acho) um deles. É uma raça que não merece confiança. Barata, porém, quer fazer filosofia, dizendo agora algumas verdades, ainda que relativas. “Filosofia de pés sujos” reúne dísticos (estrofes de dois versos) e aforismos (ou des-aforismos, como ele prefere) com uma gama de temas muito ampla, mas predominam a política, a poesia, a música, o ateísmo, o suicídio, o pessimismo e sexo.
As contradições ideológicas que caracterizam a política e o mal que determinadas vertentes trazem, aliadas à religião, aparecem em dísticos como este:
“Suástica, foice e martelo e cruz: nenhuma distinção
Entre símbolos que representam apenas dominação.”
Ou este:
“Ah, e existe à esquerda, e existe a direita,
Mas ambas são lados de uma rua estreita.”
E nos aforismos:
“Idiota: seu inimigo não está à direita ou à esquerda, está bem na sua frente. No espelho.”
Quando trata de sexo, não se furta a usar as palavras como elas têm que ser usadas, sem as amarras do puritanismo:
“Bom dia, descabelada! – Disse um poeta a sua musa que bocejava.
Ela virou pro lado e voltou a dormir enquanto ele se masturbava.”
Também aproveita para prestar homenagens àqueles artistas que o influenciaram:
“Quero ser uma canção de Belchior no teu ouvido.
Ah, esse meu coração selvagem, rebelde e atrevido.”
É nos textos que tratam da morte voluntária que a filosofia de Barata se torna mais contundente:
“Comprei uma arma de um camelô, calibre quarenta e dois
E a história do meu suicídio, deixo para contar-te depois.”
Os aforismos de que mais gosto tratam da literatura, do mundinho literário e suas idiossincrasias:
“Dedico meus escritos a todos os escritores que não são; nem sãos, nem escritores; e nem amigos são, mas apenas descritores dos próprios umbigos.”
“Escritores de verdade não produzem livros, produzem literatura. Quem produz livros é Paulo Coelho.”
Como todo bom filósofo, a condição humana é uma inquietação:
“A vida é um eterno quase. Ou quase isso.”
“A vida é um jogo em que a gente sempre perde. A vida.”
“Insônia: o problema não é o silêncio da madrugada, mas os barulhos dentro da minha cabeça.”
Alguns leitores podem se incomodar com os problemas de revisão, mas Barata se propõe a fazer uma poética suja, como seus pés, em que os erros, mesmos os não propositais, fazem parte do escarro literário. E se alguém perguntar, mas por que os pés sujos? Este aforismo pode responder:
“Reclama de meus pés sujos na cama, mas não sabe dos caminhos sujos tive que percorrer antes de poder me deitar.”
Um escritor que nos pisa (com seus pés sujos) a cabeça fazendo-a explodir, deixando os miolos em pedaços. Assim se faz uma filosofia barata. E poesia barata. Leiam o Barata.
Cassionei Niches Petry, Santa Cruz do Sul, RS, é Mestre em Letras e professor de Língua Espanhola e Literatura, além de escrever crônicas e críticas literárias para jornais e sites diversos, é autor de livros de contos e romances. É também um Livre Pensador.