Na sua obra mais conhecida, A Metamorfose, Franz Kafka nunca escreveu a palavra “barata”. É verdade. No romance — escrito aproximadamente em Novembro / Dezembro de 1912 e publicado em Outubro de 1915 na revista Die weißen Blätter sob o título original Die Verwandlung, editado por René Schickele. A primeira edição em livro apareceu em Dezembro de 1915, na série Der jüngste Tag, editada por Kurt Wolff e publicada pela Kurt Wolff Verlag, em Leipzig.
Gregor Samsa acorda transformado em “um inseto monstruoso”. Nada mais. Nenhuma palavra define se tem asas, antenas, ou o brilho gorduroso que habita as cozinhas do medo. Foi o leitor quem o vestiu de barata — essa criatura que sobrevive à bomba e ao desprezo — e, de certa forma, foi aí que nasci.
Em Belém do Pará, cidade onde morei na virada do século XXI, o asfalto sua e as janelas choram, eu vi as baratas-cascudas desfilando sua elegância grotesca. Criaturas antigas, resistentes, quase sagradas na sua repulsa. E foi nesse calor úmido, quase bíblico, que entendi Gregor: o provedor inútil, o homem que, ao deixar de sustentar, deixa também de ser amado. O ser humano, quando perde sua função, perde o rosto. Kafka sabia disso. Ele viu a inutilidade como sentença. Eu apenas a vivi.
Em O Sexto Sentido, filme de 1999, dirigido por M. Night Shyamalan e estrelado por Bruce Willis e Haley Joel Osment, o menino Cole vê mortos que não sabem que morreram, presos entre mundos, invisíveis para todos exceto para ele. Há algo de Gregor nisso: ele também existe, mas é ignorado, esquecido, e tratado como se não estivesse mais no mundo dos vivos. Eu, talvez, esteja no meio: vivo demais para ser lembrado, morto demais para ser notado. A barata, em mim, é essa consciência dupla — um bicho que ainda sente fome de humanidade, que percebe a vida e a morte ao mesmo tempo, que sobrevive na invisibilidade e no desprezo.
Kafka pediu a Max Brod que queimasse tudo — cada conto, cada carta, cada espelho rachado onde ele via sua própria miséria. Brod, com a devoção hipócrita dos falsos amigos, desobedeceu. Publicou. Imortalizou. Traiu. Se hoje Kafka é eterno, é porque Brod o condenou à eternidade.
E se hoje sou Barata, a culpa é dele.
Porque eu também pedi para que queimassem meus restos, minhas cartas, minhas tentativas de ser compreendido. Mas sempre há um Brod — alguém que insiste em preservar o que era pra virar cinza. E então seguimos: eu, Gregor e Franz, rastejando sob o rodapé da História, esperando que alguém acenda a luz e nos veja, ainda que por nojo.
O que Kafka fez foi mostrar que a transformação não é castigo, é revelação. Gregor não virou inseto. Ele sempre foi. Só acordou sendo visto pelo que era. E se o mundo me olha hoje como Barata, talvez seja apenas porque, enfim, me viram.
Em Belém, entre o calor e o lixo, aprendi que sobreviver é uma arte de desapego, que caminhar nas frestas do mundo é estar vivo quando ninguém quer olhar. Sou Barata porque vi o invisível, toquei o desprezado, respirei o impossível. Kafka me deu a forma; Brod, a eternidade; Belém, a pele. E agora, rastejando e olhando de baixo para cima, sei que ser Barata não é fraqueza. É resistência. É saber que a vida se manifesta mesmo onde ninguém ousa pisar.
02/11/2025
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.
