Atualizado em 28/07/2024 as 22:25:03
A primeira fase da carreira dos Beatles foi marcada pela explosão da Beatlemania, e certamente que é muito efusiva, embora numa análise fria, não possa ser considerada revolucionária pela música, conteúdo das letras, tampouco arranjos musicais inovadores ou performance instrumental e vocal deslumbrante.
Calma, leitor, pois com isso não estou afirmando que não gosto dos álbuns iniciais e da fase dos terninhos e cabelos considerados longos para os padrões da época, mas bem curtos pelo que veio depois no cenário do Rock.
Pelo contrário, gosto bastante desses álbuns iniciais, contendo Rock’n Roll in natura, doses maciças de R’n’B, Soul Music, baladas, pop bubblegum e que tais. Mas inegavelmente, foi a partir da segunda fase da banda, no pós-1966 que a excelência musical tornou os Beatles, a mais revolucionária banda do mundo, justificando o posto que já tinha alcançado como a mais famosa e considerando que a fama nem sempre é argumento irrefutável de qualidade artística, nesse caso, selaram a sua excelência de forma incontestável.
Nessa metamorfose criativa que alcançaram após o lançamento dos álbuns Rubber Soul e Revolver, a loucura ganhou carta branca nos estúdios Abbey Road e sabiamente, o produtor George Martin abriu sua mente e embarcou junto nesse conceito de experimentação artística total, dando vazão para que a banda lançasse seus melhores álbuns doravante, fazendo e entrando na história.
Dentro desse contexto, John Lennon mergulhou de cabeça no processo criativo total e mais que isso, tomou consciência de seu poder influenciador como ídolo de alcance mundial.
Influenciado por Yoko Ono, uma artista plástica avantgarde e pouco interessada na efemeridade da fama pop, Lennon deu vazão ao seu lado sociopolítico e tornou-se um ativista, metendo a bronca no trombone e usando sua fama para defender a causa da paz; pelo fim das guerras; da exploração e da fome no mundo.
Sua voz nos Beatles já enveredara para esse caminho do ativismo antiestablishment, mas foi na carreira solo que deu uma “voadora” no peito da caretice do mundo, dominado pelos interesses escusos, da mesquinharia e da truculência da geopolítica bélica, a favor de corporações e massacrando as pessoas, visando o dinheiro, pura e simplesmente.
Claro que comprou uma briga e tanto com os poderosos de plantão. Tornou-se o inimigo público número 1 dos Estados Unidos, incomodando pelo simples fato de pregar a paz e criticar a estupidez da Guerra do Vietnã.
O governo Nixon não mediu esforços para deportá-lo, usando todo o tipo de esforço jurídico para negar-lhe o Green Card, que lhe garantiria a residência naquele país, usando como argumento um fichamento ocorrido na Inglaterra por posse de maconha, ainda nos anos sessenta.
Não sou apologista das drogas, contudo, contesto veementemente um julgamento moral pífio dessa natureza, no sentido de que consumir marijuana era execrável no padrão de moralidade dessa gente, mas jogar bombas Napalm sobre crianças e idosos indefesos, “tudo bem”… Enfim…
O FBI e a CIA o grampearam e o perseguiram de todas as formas. Claro que outras agências internacionais coalizadas com o serviço secreto americano ficaram de olho nele, também. Destemidamente, seguiu em frente, lançando seus álbuns solo, plenos de canções com forte teor de militância. A canção “Imagine”, por exemplo, soa piegas para alguns, mas tem em seus versos, uma aula de supraconsciência. Um mundo sem fronteiras, sem diferenciações, onde todos são iguais, aponta para uma sociedade livre do egoísmo e das mesquinharias materialistas.
Mas o ideal hippie da fraternidade total entre os homens incomodava/incomoda as corporações. Para essas pessoas que só pensam no dinheiro e pouco se lixam para o estrago que causam por conta de sua sanha, Lennon e seus sonhos de fraternidade e paz, tornou-se um empecilho.
Ridicularizá-lo teria sido um caminho, mas ídolo mundial que era, certamente que uma campanha, ainda que velada, poderia surtir efeito contrário, martirizando-o e assim os marketeiros do mal evitaram tal procedimento, pelo menos num primeiro instante.
Foi quando Lennon teve uma sacada genial e para ironizar o imbróglio que o governo americano havia criado para negar-lhe o Green Card e ter assim elementos para expulsá-lo dos Estados Unidos, anunciou um manifesto, criando um país fictício chamado : “Nutopia”.
Esse neologismo por ele criado, era a junção das palavras “New” (novo/nova), com “Utopia” e esse estado era assumidamente fictício em termos territoriais, mas se apresentava como um estado supostamente oficial, pleiteando reconhecimento internacional e nesses termos, seriam considerados cidadãos de “Nutopia”, todas as pessoas que compactuassem com seus ideais de liberdade, paz e fraternidade total.
Bastando estar de acordo com tais preceitos, qualquer pessoa poderia ser considerada uma cidadã de “Nutopia”, e mais que isso, “embaixador(a)” daquele país. Seguindo esse raciocínio, Lennon apelou para o governo americano, a “imunidade diplomática”, num ato de rebeldia e tapa de luva de pelica aos que o perseguiam.
Lançado o manifesto em 1° de abril de 1973, para ironizar o dia da mentira, tinha em seu texto original os seguintes dizeres: “We announce the birth of a conceptual country, NUTOPIA. Citizenship of the country can be obtained by declaration of your awareness of NUTOPIA. NUTOPIA has no land, no boundaries, no passports, only people. NUTOPIA has no laws other than cosmic. All people of NUTOPIA are ambassadors of the country. As two ambassadors of NUTOPIA, we ask for diplomatic immunity and recognition in the United Nations of our country and its people”.
Na tradução livre :
“Nós anunciamos o surgimento de um país conceitual, chamado Nutopia. A cidadania deste país pode ser obtida pela declaração de sua consciência (quanto à existência) de Nutopia. Nutopia não possui território, não tem fronteiras, não emite passaportes; possui apenas gente. Nutopia não dispõe de nenhuma lei além das leis cósmicas. Todas as pessoas de Nutopia são embaixadoras do país. Na condição de embaixadores de Nutopia, nós pedimos imunidade diplomática e reconhecimento, pela ONU, de nosso país e de seu povo”.
O estandarte de Nutopia, era/é uma bandeira inteiramente branca, e sua simbologia dispensa maiores explicações, acredito. Mas “Nutopia” foi além da provocação e ironia fina…
A visão do país sem fronteiras, onde as pessoas eram aceitas pela afinidade com os ideais fraternais, revelava por trás de um simples statement de efeito artístico / estético / mercadológico, algo muito mais profundo. A supraconsciência por trás dessa suposta utopia, era/é uma realidade de ordem muito avançada.
Acima de qualquer conspurcação torpe, perpetrada pela pequenez de detratores incautos, supraconsciência responde a parâmetros de cosmoética. Um mundo sem mesquinharias é, sobretudo um triunfo do homem sobre o seu próprio Ego.
Lennon nos deixou em 1980, assassinado por um psicopata. Perdemos muito com a falta de sua inteligência milhas acima da média e sua determinação de sonhar com um mundo melhor e nos incentivar a embarcar nesse sonho, também.
Os detratores adoram usar a expressão “O sonho acabou”, extraída da música “God” (de 1970, contida no álbum “Plastic Ono Band”), e fora de contexto, para ironizar o fim do sonho Hippie. Mas não vejo graça alguma numa colocação desse tipo, no sentido de que só perdemos com essa inversão de valores, pois sem sonho, não andamos para frente e viver no pesadelo dos escombros niilistas, não nos leva à parte alguma, além da desolação.
Yoko Ono mantém os ideais do casal vivos em ações midiáticas, mas sem a mesma força que teriam se Lennon estivesse conosco, fisicamente até hoje. Uma dessas ações pró-Paz, é a de manter um site onde em alguns segundos, é possível se cadastrar e se tornar um cidadão de Nutopia, adquirindo o status de embaixador desse país dos sonhos.
Eu, Luiz Domingues, sou um embaixador de Nutopia e acredito num mundo fraternal, sem guerras e sem egoísmo. Se você quiser se tornar um cidadão desse belo país, acesse o link: www.joinnutopia.com
Texto Publicado na 4ª edição da Revista “Gatos & Alfaces“, Agosto 2014
Luiz Domingues é músico desde 1976, tendo tocado nas bandas Língua de Trapo, A Chave do Sol, Patrulha do Espaço, etc. Atualmente com Kim Kehl & Os Kurandeiros. Como escritor, tem três livros publicados e outros no prelo. Escreve em diversos blogs e revistas impressas.
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Sempre achei essa ação do governo norte-americano contra John Lennon um completo absurdo. O ex-Beatle podia até ser incômodo por causa de seus posicionamentos, mas estava longe de ser um elemento potencialmente perigoso para a segurança do país.