Capa & Texto: Vinícius Pereira

O Jovem Baratex & José Cat em: O Sangue, o Vinho e o Verso

Florença, Verão de 1984.

O sol não batia na cidade — ele a castigava. O Arno refletia uma luz dourada e impiedosa, e as pedras da Piazza della Signoria exalavam calor como feridas abertas. Turistas tropeçavam nas próprias sombras, e os sinos das igrejas soavam lentos, como se até Deus tivesse desistido de andar depressa.

No meio desse calor infernal, um jovem de cabelos revoltos e olhar febril mordiscava a ponta de um cigarro apagado. Chamavam-no Baratex. Ainda não usava a famosa barba branca que, anos depois, se tornaria sua marca. Era magro, de olhos que misturavam ironia e melancolia — como quem havia descoberto cedo demais que o mundo não valia tanto quanto prometia.

Ao seu lado, sentado com a postura de um gladiador em descanso, estava José Cat: um felino antropomórfico de pelos cinza e físico esculpido, o corpo de um fisiculturista renascentista. Seu olhar, porém, era de monge. Um cristão convicto, um soldado de fé. O oposto exato de Baratex — e, por isso mesmo, seu melhor amigo.

Dividiam uma mesa e uma garrafa de Chianti que já agonizava.
— Você tá pensando demais, Zé — disse Baratex, acendendo o cigarro com preguiça. — O segredo pra viver nesse calor é parar de querer entender o mundo. Ele já é burro o bastante sem a gente tentar ajudar.

José Cat olhou para o horizonte, as orelhas se movendo com o vento quente. — O mundo é burro, sim. Mas foi feito por um Deus inteligente. É isso que me deixa confuso.

Baratex soltou uma risada seca. — E eu achando que era eu o bêbado existencialista. Escuta, José… se Deus existe, ele é italiano. Só um sujeito com esse senso de humor pra criar um lugar tão bonito e encher de gente tão insuportável.

O garçom se aproximou, hesitante, com o pano no ombro.
— Mais vinho, signore?

Baratex levantou a garrafa vazia e respondeu: — Traga duas. Uma pra afogar as ideias dele e outra pra ressuscitar as minhas.

Enquanto esperavam, um acordeon começou a tocar na esquina. A melodia era de Chega de Saudade, cantada com voz rouca e doce. Era Cleuzeni, uma brasileira do Sergipe que vivia de cantar em troca de moedas e aplausos.

Baratex virou-se devagar. O olhar dele se acendeu.
— Essa voz… — murmurou. — Tem o cheiro de Aracaju e o gosto do pecado.

José Cat arqueou as orelhas. — Você conhece pecado demais pra reconhecer pelo som.
— E é por isso que reconheço. —

Cleuzeni se aproximou das mesas, cantando, e quando cruzou o olhar com o de Baratex, o verso lhe travou na garganta. Ela sorriu — um sorriso de coragem disfarçada.
— Posso sentar?
— Claro, moça — respondeu Baratex. — Mas aviso: eu só aplaudo quando choro.

José Cat observava, desconfiado. — Mais uma pra coleção de tragédias do poeta. Cleuzeni sentou-se, pegou a taça e bebeu um gole. — Vocês não parecem daqui.

Baratex respondeu: — Nem de lá. Somos estrangeiros em todos os lugares, inclusive dentro da própria cabeça.
— E o que fazem aqui em Florença?
— Procurando sentido — disse José Cat.
— E eu, vinho barato — completou Baratex.

Cleuzeni sorriu. — Então vocês se equilibram.
— Não. A gente se empurra pro abismo — disse Baratex. — Mas o vinho amortece a queda.

À noite, o Trattoria del Leone estava cheio. A música era um blues arrastado, a fumaça formava círculos sob as lâmpadas e o cheiro de carne e vinho se misturava ao suor da multidão.

Foi então que um homem alto, magro, com uma elegância natural e olhar de quem pensava o mundo como uma equação moral, entrou pela porta. Doutor Sócrates. O Magrão da Fiorentina.
— Barata! — gritou ele, abrindo um sorriso. — Você continua mais feio que a fome na Etiópia.

Baratex riu, levantando-se para o abraço. — E você continua mais sábio do que o mundo merece, Doutor.

Eles se abraçaram. Sócrates vestia uma camisa da Fiorentina com o logo da Opel, e o ar ao redor parecia se acalmar quando ele falava.
— Vim ver se a poesia ainda serve pra alguma coisa — disse o Doutor.
— Serve sim — respondeu Baratex. — Pra disfarçar a ressaca moral da humanidade.

Cleuzeni trouxe taças, José Cat permaneceu calado, e os quatro brindaram.
— À Itália! — disse Sócrates.
— À desilusão! — completou Baratex.
— À fé que resiste — murmurou José Cat.
— E ao amor, se sobrar tempo — finalizou Cleuzeni.

Riram todos. Mas o riso durou pouco. No balcão, três homens de terno preto observavam a mesa. Um deles, com uma cicatriz na bochecha, cochichou algo ao garçom e apontou discretamente para Cleuzeni.

José Cat percebeu. As orelhas dele se eriçaram.
— Barata — sussurrou, — tem coisa errada.

Baratex acendeu outro cigarro. — Tem mesmo. Esse Chianti tá com gosto de emboscada.

O homem da cicatriz se aproximou. — Signora Cleuzeni, o senhor Velluti quer vê-la amanhã. Diz que há um contrato esperando.

Cleuzeni gelou. — Não quero assinar nada.
— Não é um convite.

Baratex levantou-se, sorrindo de lado. — Amigo, ninguém manda em ninguém nessa mesa. Nem no vinho, que dirá nas pessoas.
— E quem é o senhor? — perguntou o homem, irritado.

— Um poeta desempregado e um péssimo exemplo — respondeu Baratex. — Mas com um amigo que arranha mais forte do que gato faminto.

José Cat rosnou.
— Última chance, signora — disse o homem.

Cleuzeni se levantou. — Diz pro teu patrão que Sergipe não vende voz pra mafioso. O soco de Baratex veio em seguida, rápido e certeiro. O homem caiu sobre a mesa, derrubando garrafas e pratos. José Cat agarrou outro e o arremessou contra a parede. O bar virou um campo de batalha — gritos, vidro, vinho voando como sangue.

Sócrates apenas observava, calmo, como se fosse um jogo que já sabia o resultado. Quando tudo terminou, os mafiosos estavam desacordados e o chão, coberto de vinho e cacos.

Baratex acendeu outro cigarro. — Bom, parece que perdemos o desconto da casa. Cleuzeni o olhou, ofegante. — Eles vão voltar.
— Eu também — respondeu ele.

Sócrates se levantou. — Vocês começaram algo perigoso. Velluti não é homem de esquecer.
— Todo homem é perigoso depois do segundo vinho — disse Baratex.

José Cat limpou as garras. — E o que fazemos agora?

Baratex olhou para Cleuzeni, depois para o Arno que refletia as luzes da noite. — Agora, meu amigo, a gente foge. Antes que o vinho esfrie e o sangue esquente.

E os quatro desapareceram na escuridão de Florença, sob um céu pesado de promessas e fumaça.

O vento trazia o cheiro do vinho, da pólvora… e do verso que ainda não havia sido escrito.

A noite caiu pesada sobre Florença. O vento que vinha do Arno trazia o cheiro de chuva, e as luzes dos lampiões dançavam nas poças como reflexos de uma lembrança antiga. Baratex, José Cat e Cleuzeni se refugiaram em um quarto barato no bairro de San Frediano. O lugar cheirava a mofo, a vinho barato e a medo.

Baratex limpava o sangue seco do pulso, olhando o espelho rachado.
— Engraçado — murmurou. — Toda vez que tento ser romântico, alguém tenta me matar.

José Cat afiava as garras em silêncio, encostado na janela. — Eles não vão parar, Barata. Aqueles homens tinham o olhar de quem mata por rotina.
— É — respondeu o poeta, — mas também o olhar de quem morre por tédio.

Cleuzeni andava de um lado pro outro, a voz trêmula. — Vocês não sabem com quem mexeram. Carlo Velluti é o dono de metade dessa cidade. A outra metade ele compra quando quer.

Baratex se virou, acendendo um cigarro. — Dona Cleuzeni, se tem uma coisa que aprendi com o tempo é que ninguém é dono de nada. Nem de cidade, nem de mulher, nem de si mesmo.
— Bonito discurso — respondeu ela, cruzando os braços. — Mas não impede bala.

Ele sorriu. — Nem poema impede o fim do mundo, mas a gente escreve mesmo assim.

José Cat os observava, e por um momento sentiu algo diferente — uma energia que não era fé, nem medo, mas o prenúncio de tragédia. Do lado de fora, um Fiat escuro estacionou discretamente.

O primeiro tiro veio como um trovão. A janela explodiu em estilhaços e o som ecoou pelos becos como uma reza profana. José Cat pulou à frente, protegendo Cleuzeni. Baratex se jogou atrás da cama, o cigarro ainda aceso entre os dentes.
— Droga! — gritou. — Pensei que mafioso italiano fosse mais educado!

Dois homens invadiram o quarto, armados.
José Cat saltou sobre o primeiro, rasgando-lhe o peito com um golpe seco das garras. O sangue espirrou nas paredes. O segundo atirou, acertando o ombro de Baratex. O poeta caiu, sentindo o calor do próprio sangue.

Cleuzeni gritou, mas Baratex apenas riu. — Acertei, José… o Chianti era mesmo de má qualidade.

O segundo homem se preparava para atirar de novo, mas José Cat foi mais rápido. Com um rugido, o felino o derrubou e o esmagou contra a parede. O corpo caiu mole. O silêncio voltou. Só o som distante da chuva e o gotejar do sangue.

Cleuzeni correu até Baratex, pressionando o ferimento com um lençol rasgado. — Aguenta firme, poeta.

— Sou bom em aguentar — respondeu ele, ofegante. — Já sobrevivi até à poesia dos anos 70.

José Cat olhou pela janela, o olhar frio. — Precisamos sair daqui agora.

Eles fugiram pelas vielas molhadas, Cleuzeni ajudando Baratex a caminhar.

As ruas estavam quase desertas, e o brilho das vitrines refletia o trio como espectros errantes.

Chegaram a um antigo convento abandonado nas colinas de Fiesole, um lugar que Sócrates havia mostrado a Baratex dias antes — um refúgio silencioso, com cheiro de velas velhas e pedra úmida.

Ali, José Cat improvisou curativos. Cleuzeni tremia. Baratex, deitado no chão frio, olhava o teto de abóbadas e ria baixo.

— Parece que morri num quadro do Botticelli. —

Cleuzeni segurou a mão dele. — Por que você faz isso? Por que provoca esses homens?

Baratex a olhou nos olhos. — Porque é a única maneira de sentir que ainda estou vivo. Ela abaixou a cabeça. — Você é louco.
— Sou poeta. A diferença é semântica.

José Cat os interrompeu, limpando o sangue das garras. — Acho que devíamos procurar o Doutor Sócrates. Ele pode saber o que está acontecendo.

Baratex assentiu, respirando fundo. — Boa ideia. Se tem alguém que entende tragédia grega, é ele.

Na manhã seguinte, Sócrates chegou. Vestia calça de linho, camisa aberta e carregava um semblante cansado. O jogador parecia mais filósofo do que atleta.
— Barata, meu amigo — disse, vendo o ferimento. — Você sempre acha um jeito de transformar a vida num campo de guerra.

— E você, Doutor — respondeu Baratex — sempre acha um jeito de fazer da guerra uma tese.

Sócrates se sentou ao lado dele, acendendo um cigarro.
— Ouvi dizer que o morto da trattoria trabalhava pra um empresário chamado Carlo Velluti. O mesmo que financia apostas ilegais envolvendo o clube. A imprensa tá farejando escândalo.

José Cat arregalou os olhos. — Então é por isso que eles vieram atrás de nós. Sócrates assentiu. — Vocês se meteram com um homem que compra juízes, resultados e consciências. E agora ele quer limpar a própria honra com o sangue de vocês.

Baratex ficou em silêncio por um instante. Depois sorriu. — Ora, mas então somos poetas da contravenção. Isso me agrada.

Cleuzeni segurou o braço dele, irritada. — Você não entende, Barata. Esses homens não perdoam. Eles vão te caçar até o fim.

— Talvez seja isso que me mantenha em movimento, Cleuzeni. A certeza de que alguém me quer morto. —

Sócrates o olhou com aquele misto de carinho e reprovação. — Você tem um talento raro pra transformar desgraça em estética.
— E você, Doutor — respondeu Baratex — tem o dom de transformar derrota em filosofia.

Eles riram — uma risada breve, cansada, bonita.

O sol entrava pelas frestas do convento e fazia o pó brilhar como ouro velho.
Era o tipo de luz que parecia bonita demais pra existir num mundo tão sujo.

Cleuzeni, encostada na parede, cantou baixinho uma canção triste do sertão. José Cat observava em silêncio. Sócrates acendeu outro cigarro. E Baratex, com os olhos semiabertos e o lençol manchado de sangue, sussurrou:
— Se for pra morrer, que seja com poesia no ouvido e vinho nos lábios.

Lá fora, o sino da cidade tocou. E o som parecia anunciar que o inferno acabara de abrir as portas para mais uma história.

Florença parecia suspensa naquela noite. A chuva fina descia sobre as ruelas, dissolvendo as luzes dos lampiões em véus amarelados. O Arno corria escuro, refletindo uma lua partida em dois. Baratex caminhava de cabeça baixa, o sobretudo empapado, os dedos trêmulos não se sabia se de frio, raiva ou desejo.

José Cat estava de tocaia, escondido no beco ao lado do velho armazém. Ele farejava perigo — e também algo mais. O cheiro do medo humano sempre o irritava, mas o de Baratex era diferente: tinha aroma de vinho e poesia. E isso o fazia respeitar ainda mais aquele homem que não acreditava em deuses, mas escrevia como se tentasse inventá-los.

— Velluti movimenta as apostas. O chef morto lavava o dinheiro. Cleuzeni trabalhava pra ele sem saber. Agora ela é testemunha — murmurou José Cat, com a voz grave, quase um ronronar sombrio.

Baratex acendeu um cigarro, tragou fundo e respondeu: — E o pior é que ela ainda confia em mim. Ou finge bem pra caramba. O felino o olhou com olhos dourados. — Você vai pra cama com ela esta noite, não vai?

Baratex soltou uma risada rouca. — Se o mundo vai acabar, prefiro morrer entre beijos do que entre balas. José Cat apenas assentiu. — Então escreva um bom epitáfio.

Cleuzeni o esperava em seu quarto minúsculo, na pensão sobre uma trattoria. O vestido vermelho pendia do cabide, as sandálias jogadas no chão. Ela olhava pela janela, vendo a cidade brilhar ao longe — o Duomo iluminado como um coração pulsando. Quando Baratex bateu na porta, ela já sabia que seria uma noite que não terminaria igual às outras.
— Você cheira a tempestade, Luiz — disse ela, usando o nome que poucos ainda lembravam.
— E você tem o olhar de quem já sobreviveu a muitas.

Ele entrou sem pedir licença. O vento apagou uma das velas. A penumbra dançou sobre o corpo dela, e ele pensou que o tempo inteiro escrevera poemas para aquele instante — sem saber.

Cleuzeni tocou seu rosto, traçando com os dedos as marcas do cansaço e da fúria. — Você vive como quem está sempre voltando da guerra.
— Eu tô sempre nela — respondeu Baratex, encostando a testa na dela. — Mas hoje, eu só quero trégua.

Os lábios se encontraram. O beijo foi lento, denso, como um vinho amadurecido demais. As roupas caíram uma a uma, sem pressa. O som da chuva lá fora virou trilha. O corpo de Cleuzeni tinha o gosto de sal e pecado; o de Baratex, o amargor doce do cigarro e do medo.

Ela sussurrou: — Você acha que o amor redime?
— O amor, não. Mas a memória dele, talvez — respondeu ele, entre suspiros.

O resto foi silêncio — um silêncio de corpos, de respiração, de pele. O tipo de silêncio que os poetas tentam escrever e nunca conseguem. Quando o sol tímido começou a nascer, Cleuzeni dormia aninhada ao peito dele. Baratex olhava o teto, fumando, com o olhar perdido no nada.

José Cat chegou pouco depois, com o casaco rasgado e o sangue escorrendo de um corte no braço.
— Eles sabem onde estamos — disse, entrando sem bater.

Baratex levantou devagar, vestindo a calça, o cigarro ainda aceso no canto da boca. — Velluti?
— Sim. E não vem só ele. Os homens dele estão por toda a parte.

Cleuzeni acordou assustada.
— Eu juro que não sabia de nada, Luiz! Eu só servia mesas, só queria sobreviver…

Baratex a interrompeu, com voz calma e firme. — Eu sei. Mas agora você faz parte da história. E história é coisa que não se apaga.

José Cat rosnou: — Temos de agir antes que eles ajam.
— Então vamos levá-la pra fora da cidade — disse Baratex. — Mas antes… vamos acabar com esse filho da mãe.

Ele pegou sua velha máquina de escrever portátil, a mesma que carregava desde o Brasil, e começou a digitar uma frase que parecia brotar da alma:
— O homem é o único animal que sangra de dentro pra fora.

Fechou a máquina, olhou para José Cat e Cleuzeni, e completou:
— Hora de transformar o verso em vingança.

Na rua, o sino da Catedral soou oito vezes. Florença despertava, dourada e indiferente. Mas sob seus alicerces, a noite ainda pulsava — e Baratex marchava para dentro dela, como um poeta indo ao próprio inferno, de cigarro aceso e alma em brasas.

A cidade dormia sob uma névoa espessa, o Arno parecia feito de chumbo líquido. Baratex e José Cat caminhavam em silêncio pelas ruelas, enquanto Cleuzeni seguia logo atrás, envolta num sobretudo emprestado por Sócrates. O poeta havia ficado na pensão, olhando pela janela com seu copo de vinho barato e um olhar que misturava melancolia e profecia.
— Todo mundo pensa que a tragédia é quando o herói morre — murmurara o Doutor antes de deixá-los partir. — Mas às vezes a tragédia é o herói sobreviver pra lembrar.

A chuva recomeçou, fina, persistente, como um aplauso distante. O trio chegou ao subterrâneo do Antico Velluti, o restaurante que servia de fachada para a máfia. O cheiro de vinho velho, madeira úmida e pólvora pairava no ar. José Cat farejava o perigo — o pêlo eriçado, o olhar predador.

Baratex olhou em volta e disse, com seu humor ácido: — Bonito lugar pra morrer. Melhor que muito bar que eu já toquei poesia. José Cat retrucou com um meio sorriso. — Você fala demais, velho.
— Eu escrevo demais. Falar é só um efeito colateral — respondeu Baratex.

Eles desceram mais fundo. A adega era imensa, um labirinto de barris e sombras. No centro, sentado à mesa, um homem os esperava: Velluti. Terno cinza, olhos frios, uma taça de vinho na mão. Dois capangas armados ladeavam o mafioso, e mais sombras se moviam ao fundo.

— Senhor Luiz Carlos Barata… ou devo dizer Baratex? — disse Velluti, com um italiano arrastado e um sorriso de quem já ganhou. — Vocês se metem onde não foram convidados. Florença não é lugar para poetas fracassados e gatos falantes.

Baratex jogou o cigarro no chão e pisou. — Frases bonitas. Pena que você as desperdiça com a boca errada.
— Você acha que pode me enfrentar com palavras?
— Não. Eu trouxe um amigo que prefere usar garras.

José Cat rosnou — um som grave, profundo. Os capangas levantaram as armas, mas o felino foi mais rápido. Um salto, um rugido, o som metálico do impacto. Em segundos, dois corpos caíram. Baratex puxou um revólver velho, de cabo gasto, e atirou no terceiro homem que saía da penumbra. O disparo ecoou como um trovão entre os barris.

Cleuzeni gritou. O caos se instalou. José Cat lutava com brutalidade felina, arrastando inimigos, rasgando carne. O sangue respingava nos barris, misturando-se ao vinho que escorria das rolhas partidas. Baratex, sujo e ofegante, avançou até a mesa de Velluti.

O mafioso tentou sacar a pistola, mas o poeta já o tinha na mira.
— Você acha que a arte é coisa de fracos? — perguntou Baratex, a voz rouca.
— Eu acho que a arte não mata ninguém — respondeu Velluti.

Baratex apertou o gatilho. O tiro o interrompeu. O corpo de Velluti tombou sobre a mesa, o vinho derramado tingindo o chão de vermelho. Baratex observou o sangue se espalhar e murmurou: — Agora mata.

Silêncio. José Cat respirava pesadamente, coberto de arranhões e feridas. Cleuzeni chorava, abraçada a si mesma. Baratex se encostou num barril, exausto.

José Cat olhou para ele. — Você está ferido?
— Só no lugar de sempre: dentro — respondeu Baratex.
— E ela? — perguntou José Cat.
Baratex olhou para Cleuzeni. — Ela vive. E isso basta.

Cleuzeni se aproximou. Os olhos marejados, a voz trêmula. — Você vai comigo, Luiz? A França, talvez? O norte… Baratex deu um meio sorriso, triste. — Eu não nasci pra finais felizes, minha flor. Nasci pra reticências. Ela o beijou — breve, intenso, desesperado. Depois partiu, caminhando sozinha sob a chuva que voltava a cair. José Cat observou em silêncio.
— Ela vai voltar?
— Talvez. Mas mesmo que volte, eu já terei virado outro poema.

O felino assentiu. — E o Sócrates?
— Vai ficar aqui. Tentando descobrir se a beleza ainda tem lugar num mundo que vende tudo, até a alma.

Horas depois, o amanhecer tingia Florença de dourado. O Duomo brilhava ao longe, e o Arno levava o sangue e o vinho pelo mesmo curso. Sócrates os esperava na ponte, de terno amarrotado e olhos de filósofo cansado.
— Vocês venceram? — perguntou.
— Ninguém vence, Doutor. No máximo, sobrevive com estilo — respondeu Baratex.

Sócrates sorriu de leve. — Então brindemos a isso.

Compartilharam uma garrafa de vinho barato, ainda morno. José Cat limpava o sangue das garras, olhando o rio. Baratex acendeu um cigarro, fitando o horizonte.
— Um dia, José, a gente ainda vai rir disso tudo.
— Duvido.
— Pois é. Mas é bonito duvidar.

O sino da Catedral tocou nove vezes. O vento soprou o cheiro de vinho e pólvora pelo ar.

E o jovem Baratex, sem barba branca, sem glória e sem medo, caminhou ao lado do felino. Dois errantes atravessando a ponte — poetas da noite, sobreviventes do caos.

O verso final ficou ecoando na mente do Doutor Sócrates, enquanto ele os via partir:

— O sangue seca, o vinho evapora, mas o verso… o verso nunca morre.

Vinícius Pereira
Instagram: @viniciuspereira3107

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2 Comentários
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Eduardo Schloesser
Eduardo Schloesser
10/11/2025 23:04

Texto fantástico Poesia, sarcasmo, felino, tiro, porrada e, claro, romance na medida certa. Ingredientes que funcionam uma maravilha na pena certa.

Conteúdo Protegido.
Plágio é Crime!

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