Atualizado em: 24/03/2025, as 01:03
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Segundo o Dicionário da Internet: “A cultura do cancelamento é a prática de julgar moralmente e reprimir uma pessoa por algum ato errado. Pode causar diversos impactos negativos na vida do cancelado, como a depressão. Os fatores contribuintes são: a disseminação de campanhas de ódio, a fragmentação da sociedade em grupos identitários fechados, a polarização política, e conscientização e o engajamento da sociedade em relação aos direitos individuais.” Notem que o último fator indicado, meio que justifica ou tenta dar valor positivo à coisa toda, e até quase a dizer que pouco importa quem ou quanto irá sofrer a pessoa alvo de cancelamento “cultural”.
Há uma angústia invisível que assola aqueles que caminham sobre o fio da navalha do discurso público. Não importa quão cuidadoso seja o passo, um tropeço – real ou fabricado – pode significar a queda definitiva. O tribunal da internet não admite juízes, apenas carrascos. O réu raramente tem direito à defesa; quando muito, recebe a ilusão de um julgamento sumário, cuja sentença já foi lavrada antes mesmo de sua convocação.
A cultura do cancelamento, dizem, é um avanço da sociedade civil. Um mecanismo de correção, um ajuste de contas histórico que não tolera o erro, mas exige a confissão e a autoflagelação. Seus defensores proclamam que é um progresso: uma maneira de responsabilizar figuras públicas, de proteger os vulneráveis, de erradicar comportamentos intoleráveis. Mas no tribunal da indignação digital, as punições não são proporcionais aos crimes, e a busca por justiça muitas vezes se transmuta em vingança.
O que se vê é uma fúria moral que transcende qualquer pretensão de redenção. Não há espaço para o arrependimento genuíno. Um erro, uma palavra mal colocada, uma opinião politicamente inconveniente podem selar o destino de um indivíduo. E essa punição não se limita ao ostracismo virtual – ela pode destruir carreiras, desmantelar laços familiares, aniquilar psiques fragilizadas.
O cancelamento não é apenas um boicote. Ele assume a forma de um linchamento, e o linchamento – seja digital ou físico – é sempre um ato de brutalidade coletiva. No frenesi da exposição pública, a multidão não quer explicações, quer sangue. Quer ver a vítima humilhada, reduzida, destroçada. O espetáculo do cancelamento não tem fim; há sempre um próximo alvo, uma nova vítima a ser arrastada à fogueira da moral instantânea.
E, por vezes, essa fogueira consome mais do que reputações. Pessoas canceladas perdem seus empregos, seus meios de subsistência, sua dignidade. Algumas perdem algo ainda mais valioso: a própria vida. Casos de suicídio ligados a linchamentos virtuais são reais, mas frequentemente varridos para debaixo do tapete. Afinal, não cabe à turba olhar para trás e medir os escombros que deixou pelo caminho. A indignação é rápida, mas a reflexão é sempre tardia.
O verdadeiro perigo da cultura do cancelamento não está em sua intenção de punir condutas reprováveis. Está em sua incapacidade de reconhecer a humanidade em quem erra. Se o erro se torna uma sentença perpétua, se a sociedade nega a possibilidade de reabilitação, então não há justiça, apenas uma vingança vazia, disfarçada de progresso.
E assim seguimos, condenando uns aos outros, sem nos darmos conta de que, a cada nome riscado do convívio social, a própria civilização se torna um pouco mais fria, mais impiedosa. A cultura do cancelamento pode se vestir de justiça, mas sua sombra revela uma verdade inquietante: não estamos construindo uma sociedade mais justa, estamos apenas aperfeiçoando a arte de destruir vidas.
Sei bem o que é ser “cancelado”: tentaram me cancelar antes mesmo de eu nascer (creio que entendam a alusão). Resisti e agora estou aqui. E enquanto normalmente os cancelamentos atingem pessoas de expressão na sociedade (artistas e políticos na maioria), sem muita visibilidade na mídia, outros, como eu, foram impedidos de seres “visíveis” desde o começo. E embora a denominação de “Cancelamento” seja um termo moderno, do século XXI, ela existe desde há muito, mas de forma disfarçada. Afinal, essa guerra ideológica se estabeleceu, particularmente no Brasil, em 2013, com as chamadas “Jornadas de Junho”.
23/03/2025
Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador.