Em alguma galáxia nos confins desse vasto universo, especificamente no planeta Dunastra, o calor não vinha apenas do sol — vinha da areia, das máquinas, e dos corações que ainda acreditavam em redenção.
O velho e ranzinza caubói Baratex dedilhava as cordas de seu violão numa cadeira de balanço na varanda da Lanchonete do Baratex. À sua frente, um deserto de dunas avermelhadas se estendia até onde a vista cansava. Torres enferrujadas, satélites mortos e carcaças de naves pontuavam o horizonte como esqueletos de um velho sonho humano.
Baratex tocava os acordes de “Rocky Raccoon”, dos Beatles, enquanto o sol se punha como uma moeda derretida sobre o deserto. O som do violão misturava-se ao farfalhar do vento, e cada nota parecia uma lembrança distante.
José Cat surgiu trazendo uma bandeja. O felino — alto, musculoso, de pelo prateado e olhos âmbar — caminhava com a elegância de um pistoleiro. Tinha um avental manchado de farinha e um sorriso satisfeito. As guloseimas cheiravam a fritura e exalavam um aroma doce que desafiava o calor árido.
“Trouxe o lanche da tarde, meu velho irmão de guerra”, disse o felino, pousando a bandeja.
“Quê isso dessa vez, José?”, perguntou Baratex, olhando por cima do ombro, sem parar de tocar.
“Leite frito”, respondeu o gato.
“Leite frito?”, riu Baratex, parando de tocar. “Que merda é essa, Zé?”
“É um doce espanhol, velho tonto. Leva farinha, açúcar, canela e, claro, leite.”
Baratex sorriu de canto, pegando um pedaço com desconfiança.
“Só um gato frouxo como você pra pender pra essas coisas. Dá aqui, deixa eu comer essa joça. É melhor que nada.”
José Cat riu, com as presas à mostra.
“Você devia agradecer a Deus pelo dom da culinária.”
“Deus?”, zombou Baratex. “Se Ele existe, deve estar comendo alguma coisa melhor que isso.”
O gato sentou ao lado dele, fitando o horizonte púrpura.
“Você não muda, Baratex.”
“Nem o universo, Zé. Ele só troca de roupa.”
Por um momento, ficaram em silêncio. O vento ergueu grãos de areia como brasas frias, e o sol mergulhou atrás das colinas metálicas.
José Cat quebrou o silêncio.
“Lembra daquela vez na Terra, lá em Ribeirão Preto?”
“Quando exatamente, José? Foram tantas vezes em Ribeirão.”
“Em 88.”
Baratex ajeitou o chapéu, olhou o horizonte distante.
“Por que logo essa agora?”
“Ué? A cada dia lembramos de alguma história.”
“É…” suspirou Baratex. “De fato. Mas essa mexe forte comigo, Zé.”
Ribeirão Preto, 1988.
O sol do interior batia como sentença. O asfalto tremia, o ar vibrava com o zumbido de moscas e motores, e até o vento parecia cansado de soprar o mesmo pó. O velho Opala marrom 1977 de Baratex deslizava pela avenida como um sobrevivente da ditadura — um carro que já vira o melhor e o pior das estradas. No toca-fitas, Raul Seixas chiava entre o barulho do motor:
“Eu devia estar contente porque tenho um emprego…”
Baratex riu sozinho.
“Raul, Raul…”
Deu uma tragada curta no cigarro e completou:
“Sempre alegrando a estrada.”
“O que tanto você tagarela aí, varão?”, resmungou José Cat, que cochilava no carona.
“Nada, Frajola. Continua dormindo aí”, Baratex retrucou o amigo.
O pneu dianteiro direito começou a gemer, um som fino e insistente. Baratex encostou o carro diante do Emerson Auto & Serviços, um posto gasto na entrada de Ribeirão — meio oficina, meio confessionário de graxa e cafeína.
Desceu devagar, olhando o parafuso encravado no pneu.
“Mais um prego no caminho… e nenhum no caixão”, murmurou.
O som do compressor vinha do fundo da oficina. Emerson estava lá — sem camisa, o corpo ainda largo, suado, o cabelo grisalho penteado pra trás. Levantou a cabeça devagar, como quem sente o cheiro do passado antes de vê-lo.
“Olha só… o poeta da capital.”
“E você, o mecânico da eternidade”, respondeu Baratex, abrindo o sorriso torto. “Meu pneu resolveu filosofar com um parafuso.”
Emerson limpou as mãos num pano encardido.
“Você sempre traz problema de graça. Mas esse, pelo menos, eu conserto.”
José Cat saiu do banco do passageiro, espreguiçando-se sob o sol. O pelo prateado faiscou na luz.
Emerson o olhou com uma sobrancelha arqueada.
“E esse aí?”
“Meu copiloto”, disse Baratex. “Não fuma, não fala palavrão e não me deixa morrer. Bem, quer dizer, palavrão fala sim. Às vezes.”
“Então é mais confiável que você.”
O homem ajoelhou-se, examinou o pneu, e cuspiu no chão.
“Uma vedação resolve. Mas o certo seria trocar o pneu.”
“Veda essa bagaça. Se estourar depois, estourou. Paciência”, murmurou Baratex.
O compressor gritou, o ar quente cheirava a borracha e suor. Raul seguia cantando: “Mas eu não me importo, eu não me importo com nada…”
Baratex acendeu outro cigarro.
“E aí, Emerson, como anda a vida?”
“Parada. Igual carro sem gasolina. Melhor assim.”
“E o coração?”
“Troquei por um carburador. Menos dor de cabeça.”
Riram — aquele riso que só antigos cúmplices entendem. Quando o pneu ficou pronto, Baratex pagou em notas amarrotadas.
“Vai ficar uns dias?” Emerson fitou Baratex.
“Depende”, o caubói filosófico deu de ombros, “se o vinho for bom e o pecado acessível.”
“Então você vai ficar”, riu o mecânico.
O Bar Trianon era o tipo de lugar que só abria de verdade depois do pôr do sol. Durante o dia, era abrigo de bêbados e velhos jogadores de truco; à noite, se transformava em palco para fantasmas que bebiam pra esquecer o que ainda lembravam.
Baratex entrou devagar, tirou os óculos escuros, deixou o cigarro queimar no canto da boca.
O garçom o reconheceu de outra vida — talvez de um poema lido num jornal velho.
“Cachaça ou vinho, doutor?”
“Qual dos dois faz menos perguntas?”
“O vinho.”
“Então traga duas taças. Uma pra mim e outra pra solidão.”
O rádio no balcão tocava “Maluco Beleza”, e o calor parecia dançar nas paredes de azulejo.
Foi então que ela entrou. Lídia Valença. A “viúva de ouro”. Vestido branco, lenço de seda no pescoço, olhar de quem já havia sepultado mais amores do que maridos.Falava pouco, mas o silêncio ao redor dela dizia tudo. Baratex a observou pelo reflexo da garrafa. Ela notou. O tipo de mulher que percebe quando alguém a admira — e escolhe se retribui o olhar ou destruir quem ousou.
“Posso?”, perguntou ela, indicando a cadeira à frente.
“Claro. O vinho é democrático.”
Ela sentou, cruzou as pernas, acendeu um cigarro com calma.
“O garçom disse que você bebe sozinho.”
“E você acredita em garçom?”
“Depende do que ele serve.”
Riram baixo. A risada dela tinha algo de tragédia ensaiada.
“Você é daqui?”, perguntou.
“Sou de lugar nenhum. E você?”
“Sou daqui, mas já quis ir embora mais vezes do que devia.”
“Então temos algo em comum: arrependimentos geográficos.”
Ela bebeu um gole, olhou-o de cima a baixo.
“Lídia Valença. Seu nome?”
“Baratex.”
“Parece apelido de contrabandista.”
“Já fui pior.”
José Cat entrou nesse momento, discretamente, e sentou num canto. O garçom empalideceu — nunca vira um felino tão grande. Lídia apenas arqueou uma sobrancelha.
“Amigo seu?”
“Meu anjo da guarda. Às vezes, literalmente.”
“Você tem sorte.”
“Não. Tenho dívidas.”
Ela riu, aquela risada que parecia quebrar o calor do ar.
“Você parece o tipo de homem que atrai tempestade.”
“E você, o tipo de mulher que dança na chuva.”
Por um instante, o mundo se calou. Nem o rádio ousou continuar. O vento soprou pelas frestas do bar, trazendo o cheiro doce e distante dos canaviais. O cigarro de Lídia desenhava espirais lentas, como se o destino tivesse pressa de começar.
Baratex ergueu a taça.
“Ao acaso.”
Ela brindou.
“Ao perigo.”
E quando o vinho tocou os lábios dos dois, o relógio do bar marcou nove horas — o mesmo horário em que, um dia depois, o corpo dela seria encontrado queimado num canavial às margens da estrada de Sertãozinho.
Mas por enquanto, ninguém sabia disso. Por enquanto, ainda havia calor, vinho e o tipo de silêncio que antecede uma tragédia.
O caubói filosófico acordou com o som de um ventilador tentando cortar o calor. As pás giravam lentas, como se o ar estivesse cansado de existir. Baratex abriu os olhos e viu o teto alto, as cortinas translúcidas, o cheiro de perfume misturado com fumaça de cigarro. Lídia Valença dormia nua ao lado, o corpo coberto apenas por um lençol branco que parecia levitar sobre a pele. A luz da manhã entrava pelas frestas da janela, dourando o quarto como se o pecado tivesse hora marcada.
Baratex ficou ali, quieto, olhando-a respirar. Pensou que nunca vira uma mulher dormir daquele jeito — em paz, como se estivesse se escondendo do mundo dentro do próprio corpo. Pegou o cigarro amassado do criado-mudo e o acendeu com cuidado.
“Você fuma até dormindo?”, murmurou Lídia, sem abrir os olhos.
“Às vezes. Ajuda a embaçar pesadelos.”
Ela abriu os olhos e o encarou por um instante longo, quase solene.
“Notei que você fala bonito. Isso é perigoso.”
“E você beija bonito. Isso é letal.”
O riso dela foi curto, como um estalo de fósforo.
“Você não é daqui, né?”
“Sou de onde o sol esquece de nascer.”
Lídia levantou-se, amarrou o lenço no pescoço e serviu duas taças de vinho.
“Hora imprópria?”, perguntou, erguendo uma delas.
“Não existe hora errada pra se lembrar que está vivo.”
Beberam em silêncio. O vinho era denso, escuro como sangue fresco. No rádio, tocava “Sampa”, de Caetano, abafado pelas paredes da casa. Baratex deixou a taça sobre o criado e foi até a varanda. O ar quente o envolveu como uma lembrança.
José Cat estava lá fora, encostado no batente, usando calça jeans surrada, camisa xadrez aberta no peito e botas de couro rachadas. O olhar fixo no horizonte, a Bíblia dobrada debaixo do braço.
“E aí, Frajola,” disse Baratex, acendendo outro cigarro. “Meditando como um Jedi bobalhão?”
José Cat nem se moveu.
“Não. Só tô olhando o céu. Sabe, meu amigo, às vezes Ele fala, porém o nosso interior anda tão barulhento, que não conseguimos ouvir.”
Baratex riu. “Se Ele falar, me avisa. Eu trago café.”
O gato virou o rosto, os olhos âmbar endurecidos.
“Essa casa cheira a despedida, Baratex.”
“Todos nós cheiramos a despedida, Zé.”
“Você devia parar de correr atrás do vento. Ele não leva ninguém pro céu.”
Baratex deu uma tragada, soltando a fumaça devagar.
“Ah, ótimo. Lá vem você…”
José Cat virou-se completamente agora, encostando a Bíblia contra o peito.
“Sou seu melhor amigo. E, como tal, nunca desistirei de você. Se abrisse seu coração, você seria um grande instrumento para o Reino.”
Baratex ergueu uma sobrancelha, zombando.
“Logo eu? Um sujeito que mal afina o próprio violão?”
“Justamente. Deus usa desafinados pra tocar corações duros.”
Baratex soltou uma risada rouca.
“Já abri meu coração, Zé. Essa Lídia é fabulosa.”
“Tolo… ”
O silêncio entre os dois pesou. O vento fazia o pano da cortina bater de leve, como um aviso.
“Volta pra dentro, Baratex”, disse José Cat, com voz firme. “Tem olhares que são armadilhas. E tem gente que o diabo manda bonita só pra parecer bênção.”
Baratex jogou o cigarro no chão, esmagando a brasa com o coturno.
“Como sempre afiado hein, Zé…”
“É que o inferno não tira férias.”
Os dois ficaram em silêncio, lado a lado, olhando o sol morrer sobre o jardim da mansão.
Lídia o esperava de pé, diante do espelho. O lenço no pescoço escondia uma pequena cicatriz. Ela o observou pelo reflexo.
“Seu amigo parece não gostar de mim.”
“Ele não gosta de gente que tenta se esconder da verdade, Lídia. E você tem muitos segredos pra tão pouco silêncio.”
“E você acredita em quê, Baratex?”
“Em coincidência, talvez. E nas contas que ela me deixa.”
Ela virou-se, aproximou-se devagar e pousou a mão sobre o peito dele.
“Você fala como quem já foi perdoado.”
“Ou como quem desistiu de pedir perdão.”
O beijo veio calmo, cheio de urgência — desses que pedem desculpas pelo que ainda não fizeram.
Mais tarde, o sol se rendia. Baratex descia as escadas, o cigarro pendendo da boca. José Cat o esperava ao lado do Opala, braços cruzados, a Bíblia ainda debaixo do braço.
“Terminou a aula de teologia, pecador?”
“Pecado é só um ponto de vista, Zé.”
“Errado. É uma sentença. A diferença é que uns cumprem antes, outros depois.”
“Você devia ser pastor. Já tem o terno invisível.”
“E você devia ter medo.”
Baratex olhou pra ele.
“Vi um sujeito sair daqui de madrugada”, disse José Cat. “De terno, com uma maleta preta.”
“Talvez fosse o jardineiro.”
“Jardineiro com perfume francês e sapato de couro?”
Baratex riu. “Então era o jardineiro do Éden.”
José Cat suspirou. “O ar dessa casa tá errado. Até os retratos dela parecem pedir oração.”
Baratex abriu a porta do carro.
“Não se preocupe, Zé. Deus cuida dos justos. E dos burros.”
“Tomara que Ele tenha turno extra pra você, então.”
Na manhã seguinte, o rádio do Bar Trianon trouxe a notícia.“Encontrado esta manhã, em um canavial às margens da estrada de Sertãozinho, o corpo de uma mulher identificada como Lídia Valença, viúva de…”
O copo caiu da mão de Baratex. O vinho se espalhou como sangue sobre o balcão. “…as causas do incêndio ainda estão sendo investigadas. A polícia não descarta a hipótese de homicídio.”
José Cat baixou a cabeça. Emerson, o mecânico, limpando as mãos num pano sujo, observava o amigo com o olhar de quem já sabia o final antes do início.
“Eu te avisei que essa cidade só abraça pra morder”, disse Emerson.
Baratex pegou o maço de cigarros com mãos trêmulas.
“Ela era viva demais pra morrer assim.”
José Cat olhou firme pra ele.
“Depois você reclama quando digo que precisa me ouvir mais, não?”
Baratex se virou para o espelho do bar — e, por um instante, jurou ver o reflexo dela atrás de si. Um vulto branco, sorrindo. Depois, nada.
Emerson então lhe trouxe uma garrafa de vinho.
“Ela te deixou isso”, disse. “Um vinho importado. O mesmo rótulo do Trianon.”
Baratex pegou a garrafa, olhou o vidro contra a luz. Dentro, algo refletia mais do que vinho.
“Talvez a resposta esteja aí dentro”, disse Emerson.
Baratex assentiu.
“Ou talvez o resto da minha alma.”
“Vai por mim. Dê uma olhada”, insistiu Emerson.
O vento soprou poeira pela rua. O sol descia, queimando tudo de novo.
E assim, entre o corpo e o vinho, o poeta soube: alguns amores não morrem — eles apenas mudam de temperatura.
O som do relógio parecia o de uma bomba prestes a estourar. Baratex estava sentado à mesa do quarto barato, os olhos fixos na garrafa que Lídia lhe deixara. A rolha ainda intacta. O vinho, escuro e espesso, refletia o rosto dele como um espelho deformado. Do lado de fora, Ribeirão amanhecia devagar — um sol fraco tentando se impor sobre a fuligem e a névoa dos canaviais queimados. A cidade parecia exalar o mesmo cheiro da morte dela.
Baratex pegou um canivete, raspou o lacre e girou a rolha com cuidado. Nada. Mas, quando inclinou a garrafa, um som metálico bateu no vidro. Virou-a de cabeça pra baixo — uma única chave presa a um pequeno chaveiro de cobre, com as iniciais L.V., deslizou até o gargalo. E, preso a esse mesmo chaveiro, um pedaço de papel enrolado, colado com vinho seco.
Desdobrou com as mãos trêmulas. As letras borradas, mas legíveis:
“Se eu morrer, não foi por amor. Foi por saber demais. Essa chave dá acesso ao Galpão da Rua do Café. É lá que meu cunhado, Salim, meu algoz, gerencia seus negócios inescrupulosos.”
Baratex fechou os olhos. O ar ficou pesado. Sabia o que vinha a seguir.
Horas depois, o caubói filosófico foi à oficina de Emerson, contando seu achado.
“Dr. Salim”, disse Emerson, enquanto colocava café no copo de metal. “Empresário. Dono de meia Ribeirão e sócio oculto de duas usinas. A Lídia era viúva de um dos irmãos dele. Ela devia ter mexido onde não devia.”
“Ou com quem não devia.”
“Ou os dois.”
José Cat entrou na oficina com a Bíblia debaixo do braço.
“O Senhor me incomodou a noite toda”, disse. “E quando Ele incomoda, é porque tem obra pra fazer.”
Baratex riu.
“Dessa vez, a obra vai precisar de pólvora, Zé.”
Emerson pegou uma chave inglesa.
“Galpão da Rua do Café. É lá que o doutor guarda os esqueletos, pelo
visto.”
Baratex pegou a chave, guardou no bolso e acendeu um cigarro.
“Então vamos abrir o armário.”
O galpão cheirava a gasolina e medo. Pilhas de papéis, caixas metálicas, o eco dos passos se perdendo entre os barris de óleo. Baratex, José Cat e Emerson adentraram o local. Lá dentro, sob o telhado de zinco, Dr. Salim os esperava — de terno claro, paletó aberto, a mão direita segurando um copo de uísque.
“Ah… o candango que andou se esfregando com minha cunhada.”
Baratex manteve o olhar fixo.
“E você é o famigerado Dr. Salim. Pelo visto, devo deduzir que sabia que Lídia me daria a chave do seu covil?” – Mostrou o chaveiro de cobre.
O sorriso do homem se desfez. Atrás dele, três seguranças ergueram os revólveres. “Eu sei de tudo, jagunço enxerido. Se meteu onde não devia, forasteiro. Mas tudo bem, não tem problema. Ouvi dizer que é um poeta, não? Bem, poeta bom é poeta quieto.”
Baratex deu meio passo à frente, pondo a mão direita no revólver em seu coldre.
“Te garanto que não será mais quieto do que seu mausoléu.”
O primeiro tiro veio do fundo — José Cat reagiu mais rápido, saltando e cravando suas garras no capanga que tomou a iniciativa. Em segundos, o galpão virou um inferno de pólvora e eco. Emerson derrubou um dos homens com uma chave inglesa.
José Cat recitou, entre disparos:
“Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido!”
Baratex, escondido atrás de uma pilha de barris, gritou:
“Ei, Frajola, não esquece que eu tô do lado errado da citação!”
“Então muda de lado!” — respondeu José Cat, esmagando o crânio de um outro capanga.
O último segurança caiu, mas Dr. Salim ainda estava de pé, ofegante, a arma tremendo na mão.
“Você não entende! Ela era o problema! Ia entregar tudo! Ia arruinar a cidade!”
“Então você resolveu arrumar o inferno.”
“Meu irmão deu a ela tudo!” gritou o homem. “Dinheiro, casa, poder!”
“Mas não amor.”
O silêncio que veio em seguida foi mortal. Baratex apontou o revólver, mas hesitou. A lembrança de José Cat ecoava: ‘Tem gente que o diabo manda bonita só pra parecer bênção’.E Lídia tinha sido os dois.
Salim aproveitou a hesitação, ergueu a arma — mas antes que atirasse, um galão de combustível tombou atrás dele, explodindo com o fogo do cigarro que caíra de sua própria boca. O clarão engoliu o galpão num rugido. Baratex e José Cat correram para fora, tossindo, cobertos de fuligem. Emerson veio logo atrás, mancando, o rosto chamuscado. O prédio ardia como o céu de um castigo antigo.
Baratex, ofegante, olhou pro fogo.
“Ela merecia um fim melhor.”
José Cat balançou a cabeça.
“Ela teve o fim que escolheu. E você, o recomeço que não queria.”
Horas depois, o Opala marrom 77 cortava a estrada de Sertãozinho, o pôr do sol queimando o capô. José Cat dormia no banco do carona, a Bíblia aberta sobre o peito. Emerson voltara pra oficina — disse que ainda tinha “motores pra ressuscitar”.
Baratex dirigia em silêncio, o cigarro pendendo do canto da boca. O rádio chiava, e entre os ruídos de estática, a voz de Raul Seixas surgia:
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante…”
Ele riu sozinho.
“Raul, você e eu… sempre mudando de forma pra não morrer de tédio.”
No banco de trás, a garrafa vazia rolava de um lado pro outro, tilintando como um sino distante.
“Ela morreu por saber demais,” murmurou. “E eu sigo vivo por não saber de menos.”
A estrada seguia sem fim. O céu se fechava, tingido de fogo. E no horizonte, a certeza de que mais peripécias os aguardavam. Baratex dedilhou os dedos no volante como se tocasse violão.Sussurrou, quase rindo:
“Até lá, Lídia… que o vinho te mantenha quente.”
O Opala sumiu na poeira, engolido pelo entardecer, enquanto, no futuro, o velho Baratex sorria com a lembrança de Ribeirão Preto, lá em 88.
FIM
Vinícius Pereira , Nova Iguaçú, RJ, já teve vários perfis em sites de fanfics. Após um longo hiato, por intermédio do destino (ou o que quer que prefira definir), ele retorna à escrita com a série de contos das aventuras do Baratex, figura que homenageia o grande Barata Cichetto.






Os contos do Baratex até o momento estão carentes de comentários, não é? Se não houve interesse até o momento, azar dos desinteressados, pois esses textos são ótimos!
Concordo em todos os aspectos.