Foto: Barata - Modelo Lizzy Borden e Livros Repostos Depóis do Crime

Vômito de Metáforas | Que Me Perdoe o Único dos Deuses Vivos: o dos Livros

Atualizado em: 30/10/2024, as 10:10

Todos dias desde que me conheço por gente. Penso na minha morte. Mas a penso de forma diferente. Para minha sorte. Não penso com medo. E dela não guardo segredo. Penso com respeito. E de natural jeito. Penso na finitude. E repenso a atitude. Concluo que de qualquer forma. Estou mais perto, essa é a norma. O que me assusta é o medo da dor que a antecede. Ou se sucede. Sempre fui fraco com relação à dor. Digo isso sem vergonha nem pudor. Não a encaro como alívio ou descanso. Nem como o navegar num rio manso. Com o barqueiro Caronte. Passando por baixo de uma ponte. Encaro como um Nada Eterno. Com nada de Céu ou Inferno. Sem demônios ou deuses. Nem anjos nem semideuses. Penso nas minhas meninas. Deusas felinas. Que sentirão minha ausência. Elas que são minha viva referência. Ficarão tristes com minha partida? Sumirão pela porta de saída? Tentarão se enfiar no meu caixão. Num arroubo extremo de paixão? Quem cuidará das minhas deusas em decúbito. Que perderão seu mais fiel súdito? Será que sentirão saudades? (Gatos são estranhas deidades). E eu como serei apenas o vácuo no espaço. Sem poeira e sem abraço. Jamais saberei o que estarão a sentir. E não vou agora mentir: Talvez eu gostasse que o crente estivesse certo. E que dos amados entes pudéssemos ficar perto. O que atrapalha é minha certeza. De que não Deus não há senão a Natureza. Que cria. E descria. Os seres humanos e os gatos. Os impérios romanos e os abstratos. Os ditadores desumanos e os carrapatos. E os comunistas inumanos e os ratos.  — Olho agora a minha estante e penso no destino dos meus livros. (Livros sentem e choram porque são seres vivos.) Que fim levarão? Para onde irão? Depois que eu for embora? E nunca mais retirá-los da prateleira. Me sentar numa cadeira. Com um cigarro na cabeceira. Em sua companhia a noite inteira.  Serão levados a uma livraria de livros antigos? Irão para a casa de amigos? Ou serão jogados na lixeira. Ou mesmo na lareira? Serão um dia ainda lidos? Terão seu dorsos polidos? Ou serão leiloados ou vendidos. A comerciantes falidos? Que fim terão meus antigos companheiros. De salas, quartos e banheiros? Que destino os espera quando eu desaparecer? Será que eles irão de mim também esquecer? São tantos anos da mais pura e sincera amizade. Entre esses amigos de verdade. Que se eu pudesse, depois de morto morreria de saudade. Ou os levaria comigo para a eternidade. Morro antes só de pensar na separação. Entre mim e minha pequena biblioteca. Alvo de minha eterna adoração. Que já passou por três casamentos e uma hipoteca. Mas me consolo pensando terão uma continuação. Nem que seja nalguma boteca. E que muito depois de eu desaparecer. E apodrecer. Ainda sejam amados. Lidos. E chamados de queridos. Pensar que esses seres autoconscientes. Terão companhia e abrigo. Longe dos indecentes. E dos perigos. Distantes das fogueiras e dos castigos. Que tenham eles uma vida longa. Que se prolonga. Muito além da que eu tive. E que estejam onde eu nunca estive. Que sejam cuidados. E acariciados. Como eu nunca fui desde o começo até o fim. E espero que deem o mesmo prazer que deram a mim. — Levarão consigo minhas marcas de dedos encardidos. Meus rabiscos às margens em garranchos comedidos. Carregarão consigo o cheiro do meu cigarro. E até restos do meu escarro. Alguns até terão manchas amarelas de esperma. Da minha ejaculação enferma. Antes de ir, no entanto. Preciso confessar meu desencanto. Minha culpa, minha culpa absoluta. Porque um dia por pressão de uma filhadaputa. Incinerei As Flores do Mal. Minha coleção de Animal. Além do Eu de Augusto. E outro livro vetusto. Não fiz o que deveria. E, ah, como haveria.  Queimar a cadela numa fogueira santa. A maldita vadia sacripanta. Que me perdoem os deuses da literatura. E os santos padroeiros da cultura. Por eu não tem queimado aquela criatura. E depois ter sentado e lido uma escritura. E por fim me perdoe o único dos deuses vivos: O Deus dos Livros.

21/05/2024

Do Livro:
Vômito de Metáforas
Barata Cichetto
Gênero: Crônicas Poéticas
Ano: 2024
Edição:
Editora: BarataVerso
Páginas: 248
Tamanho: 20 × 20 × 1,50 cm
Peso: 0,500

Barata Cichetto, Araraquara – SP, é o Criador e Editor do BarataVerso. Poeta e escritor, com mais de 30 livros publicados, também é artista multimídia e Filósofo de Pés Sujos. Um Livre Pensador

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Genecy de Souza
Genecy de Souza
10/06/2024 21:10

Sempre sinto um frio na barriga, quando leio algo sobre o destino que esses amigos de papel terão após a partida daquele que os (a)juntou em uma estante. E sinto pena dos meus livros, discos e filmes, pois algo me diz que eles não serão receptores do amor de seus novos alojadores quando eu me chamar saudade.
Belo texto, embora preocupante.

Barata Cichetto
Administrador
Responder a  Genecy de Souza
10/06/2024 21:44

Sempre penso nisso, e foi o que me motivou a falar sobre. Meus descendentes, herdeiros e merdeiros, se apropriarão do que lhes poderá render algum lucro, o resto irá com certeza para caçambas de lixo ou jogados nalgum canto escuro onde apodrecerão, decerto mais lentamente que minha carcaça.

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